Acredito que algumas lacunas do meu texto anterior possam ser eliminadas caso o passado de uma das personagens de Forgotten Realms que já se transformou em um card de Magic: the Gathering seja explorado. Tratar sobre Lolth e o surgimento dos Drows fatalmente deixará claro porque há tantos elfos espalhados pelos planos do multiverso de D&D.
Gostaria de deixar claro que eu irei tentar juntar informações dispersas por alguns livros de RPG, principalmente informações sobre os elfos em Forgotten Realms, pois este se tornou o cenário padrão de Dungeons & Dragons, assim como o local onde se passam os acontecimentos de jogos de vídeo game como o recém-lançado Dark Alliance.
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E como deveria ser, tudo se inicia comCorellon Larethien, a divindade patrona de todos os elfos. Corellon pode ser vista como a personificação de tudo que é associado ao povo élfico e, portanto, reúne características diversas como a de guerreira, poeta, bardo, maga e uma identidade de gênero não-binária. Segundo o cânone de D&D, o avatar ou a manifestação de Corellon nos planos materiais ora assumia o gênero feminino, ora o masculino. Isso quando ele não optava por trocar de gênero mesmo depois de manifestar seu avatar, de um momento para outro.
Esta característica não foi uma invenção dos últimos livros do jogo de RPG pensando numa possível representatividade, pois os livros voltados para a terceira edição já indicavam a identidade não-binária de Corellon. Devo deixar claro que a identidade da divindade élfica reflete muito mais a paixão pela mutabilidade do que qualquer outra coisa, além disso, Corellon visitava diversos planos do multiverso por não se enxergar morando em um só lugar.
Segundo o livro "Moderkainen’s Tome of Foes", esse aspecto volúvel de Corellon teria sido responsável pelo surgimento das animosidades existentes com o deus Grummish, a divindade patrona dos goblinóides. De acordo com o livro "Monster Mythology" voltado para o AD&D (segunda edição das regas do jogo), a briga entre as divindades começou quando Corellon tentou impedir que os filhos de Grummish tivessem um território fixo para viver. O que realmente nos interessa é o fato de que elfos nasceram do sangue derramado por Corellon nas primeiras brigas que ocorreram contra Grummish.
Dentre esses elfos primordiais, um deles, Araushnee, acabou tendo um relacionamento com Corellon. Segundo as lendas élficas, foi neste instante que o deus Corellon assumiu uma identidade masculina na maior parte do tempo, já que havia se apaixonado por alguém que possuía identidade feminina. Desse casamento nasceram todas as outras divindades élficas, dentre elas Eliastrae e Vhaeraun, e o surgimento dos drow.
Araushnee teve a ambição de que o povo élfico criasse civilizações como a dos demais povos e para tal propôs que os elfos deixassem de ser tão mutáveis. Devo deixar claro aqui que em alguns livros ela não tem uma intenção maligna com essa proposta, mas que Corellon interpretou dessa forma. Araushnee trocou seu nome para Lolth e passou a pregar que os elfos seguissem os planos dela.
Aqui novamente nós temos explicações divergentes sobre o mesmo acontecimento. Na visão do mago Moderkainen fora neste instante que Lolth foi exilada para o plano do Abismo como uma entidade maligna, contudo os manuais do cenário Forgotten Realms já publicados contam uma versão que nos faz ter uma visão de Corellon como sendo uma divindade temperamental, para não dizer que ele foi bem inconsequente.
O povo élfico perdeu a capacidade de alterar a sua aparência assim como a de trocar de gênero, passando a ter uma aparência andrógina, e aqueles que se tornaram seguidores de Lolth receberam um tom de pele morena e cabelos prateados. Outra consequência foi a dispersão do povo élfico pelo multiverso de D&D.
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Na versão dos fatos narrados do ponto de vista de Forgotten, Araushnee se aliou a outras divindades tais como Grummish e Malar, chegando a tentar matar Corellon duas vezes. Após ambas as falhas, ela teria se transformado numa aranha para tentar mais uma vez em vão. Como Corellon ainda mantinha sentimentos por Araushnee, ele a deixou fugir e foi aí que ela trocou de nome para Lolth, resolveu morar no Abismo e os drows teriam surgido como um povo maligno.
Estas lutas contra Corellon acabam por refletir algo após todos os elfos serem exilados do reino de Arvandor, local onde Corellon havia decidido morar com Lolth. Após essa expulsão de seu reino original, o povo élfico se espalhou por Toril e... civilizações élficas surgiram. Como era de se esperar, seguidores de Lolth e de Corellon passaram a guerrear entre si.
Os elfos aliados a Lolth passaram a invocar ínferos contra os demais povos élficos levando à aproximação deles com o balor Wendonai, que teve inclusive uma grande influência na transformação dos drows num povo com alinhamento majoritariamente maligno. Antes de prosseguir, gostaria de deixar claro que “balor” nada mais é do que o nome criado para se referir a demônios existentes no multiverso de D&D que se assemelham a uma criatura bastante conhecida pelos fãs da obra de Tolkien.
Wendonai teve grande influência na corrupção de Lolth e dos drow, mas Corellon poderia ser considerado o grande responsável pelo estopim disso: uma magia foi lançada por ele no decorrer do quarto e penúltimo grande conflito entre os elfos para criar um refúgio seguro aos elfos. A ilha de Evermeet foi criada e Toril foi assolada por terremotos que destruíram o reino dos seguidores de Lolth, fazendo com que as ruínas da civilização drow fossem parar em Umbraeterna (Underdark).
Irada com a ação quase que genocida de Corellon, Lolth teria recorrido ao auxílio de Wendonai que em troca legou aos drow a sensibilidade à luz solar que possuem. Essa aliança acabou por transformar Lolth na entidade maligna como a conhecemos atualmente e justificaria a opção da deusa por criar seu reino no Abismo.
Essa grande quantidade de informações se faz necessária para compreender a atual postura da Wizards of the Coast com relação aos drow, pois todo o cânone sobre eles passou a ser revisto em função do lançamento do jogo de vídeo game Dark Alliance.
Do mesmo modo que cards considerados racistas foram banidos das listas de cards válidos para se jogar de Magic: the Gathering, elementos do cânone de D&D foram alterados, e no caso específico dos drow a Wizards fez um esforço para que eles perdessem sua personalidade maligna como uma característica inerente, evitando determinismos biológicos e culturais que sempre existiram no jogo.
Como historiador ressalto que histórias de fantasia medievais sempre refletem o imaginário que os criadores das narrativas possuem sobre a Idade Média e não necessariamente possuem relações com conhecimentos históricos de fato. Deixo aqui um link para um artigo que foi traduzido paro o português e disponibilizado por Luís Guerra no site de um núcleo de pesquisas medievalistas da UFFRJ que explora esse raciocínio e indica como a classe “Bárbaro” pode inundar uma mesa de RPG com preconceitos com relação a povos ditos incivilizados e estereótipos negativos que circulam a respeito dos vikings e de povos como os inuit.
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O movimento efetuado pela Wizards of The Coast de alterar o cânone de D&D foi reflexo de alterações surgidas em jogos de outras empresas e cito aqui como exemplo as alterações prometidas numa futura segunda edição das regras do RPG “Dungeon World”, na qual não teremos mais o termo “raça” por conta dos significados negativos que ele carrega.
Os resultados práticos para o cenário de Forgotten são a diminuição do poder tido por Lolth dentro da sociedade drow e o fato de Eliastrae e Vhaeraun terem elevado os poderes que possuem.
Em termos de cenário, ambas as divindades anteriores que se opõem às ações isolacionistas e supremacistas de Lolth passaram a acumular mais poder após as últimas interferências do Lord Ao (a divindade cultuada pelas divindades do cenário) em Toril e que favoreceu um equilíbrio de forças entre os deuses presentes em Forgotten Realms.
No artigo “Beyond the Underdark: Secrets of the Drow” fomos apresentados a dois subgrupos que viviam isolados e distanciados de Lolth, “aevendrow” e “lorendrow”, criados justamente para refletir essa alteração no cânone do universo D&D. Acredito que alterações como essa podem parecer algo forçado, mas é necessário para trazer ao RPG um pouco mais de maturidade, afastando a concepção de que um povo carrega consigo características que o faz ser rotulado como essencialmente maligno e portanto é normal que ele seja alvo de ações violentas.
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